terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Cena Cotidiana III

(Um boteco copo-sujo qualquer, parecido com aqueles do Mercado Novo, na rua dos Tupis, em Belo Horizonte, com o som de Fotografia 3x4 de Belchior ao fundo. Mesas e cadeiras desparelhadas postas na calçada, um forte ruído de fundo, pessoas falando ao mesmo tempo, alguém acompanhando a canção meio desafinado)
ANDRÉ - Jorge, cê tá cansado de saber que eu te amo, porra! O quê que eu preciso fazer mais? Já lavo tua roupa, chupo tua rola, limpo tua casa, aturo tua mãe e toda a porra do resto do mundo! Caralho Jorge! Cê nem se importa de saber o quê que eu tô sentindo! Caralho Jorge, CARALHO!!!

JORGE - Porra André, fala baixo! Pára de dar chilique. Tenha um mínimo de respeito!

ANDRÉ (Fazendo cara de indignado, e abrindo os braços em tom de irritação) - Respeito? Cê tá pedindo respeito pra você ou pra essa merda de lugar, com essa música baranga repetindo pela milésima e esse cara desafinado que não para de cuspir no chão? Cê tá pedindo que eu respeite essa ralé ou que eu te respeite na frente dessa escória? Nenhum deles vale o escarro que esse merda aí ao lado não cansa de cuspir na nossa direção. E você é igual a eles Jorge, se não fosse, não consumia suas noites aqui e ainda me trazia junto! 

JORGE - (Com um gesto apaziguador, levantando-se com calma e sorrindo desajeitado para os outros fregueses do bar) - Tudo bem, André! Se você quer discutir meus defeitos, eu assumo muitos deles! Tudo bem. Mas vamos fazer isso em casa, agora. Já chega por hoje! Acho que já bebemos demais! Vamos.

ANDRÉ - (Quase gritando, empurrando a mesa e derramando os dois copos de cerveja sobre ela) - Em casa? EM CASA!!? Tô cansado de você querer me esconder e se esconder em casa. Tô puto. E tô cansado de saber que em casa é só você botar sua rola pra fora e eu ir logo me acalmando e ficando louco! Não, não vou pra casa não, vou encerrar isso de vez aqui! (Puxa uma faca de mesa, dessas com serrilhado e aponta para o peito de Jorge)

JORGE - (Mal conseguindo disfarçar o temor em sua voz) - Abaixa isso André. Cê sabe que não pode viver sem mim. Relaxa vai... Já passamos dos nossos limites aqui.

ANDRÉ - (Com um sorriso malicioso nos lábios, uma lágrima nos olhos e um olhar obstinado para Jorge) - Não sei viver sem você? É isso então? (Enfia a faca em seu próprio peito)

(Fecham-se rapidamente as cortinas, ouve-se o barulho de um corpo caindo ao chão, juntamente com cadeiras, mesas e copos. Um grito forte que poderia ser de Jorge ou de qualquer outro cliente do bar também poderá soar. Sons adicionais de sirene também podem ser utilizados. Ao fundo, Belchior vai terminando os versos "Eu sou como você, eu sou como você que me ouve agora!" acompanhado pelo homem desafinado que bate palmas e se cala, encerrando a cena com um silêncio absoluto.)

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