quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

IV (Eu me lembro)

Não me escapa à memória a expressão da cabeça da Górgona de Caravaggio, pintada num medalhão redondo de madeira. É sempre difícil lidar com os 'milagres' (conforme o diria Alberti) que a pintura nos pode proporcionar. Dentre as obras da mostra que visitaram minha cidade, tantas tão maiores e talvez tão mais importantes, ficou o olhar estarrecido daquela figura, espantada com seu próprio reflexo no escudo de Perseu, mas ainda impregnado do seu poder paralisante, de sua fúria e talvez do medo que tanto causara. Fechar os olhos e buscar na lembrança sua imagem é, ainda, como estar petrificado frente a ela, impotente, incurioso, lasso.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pessoa III

Desconhecer-se,
dar-se a um leque de possibilidades,
entregar-se sem destino
à estrada, 
aos caminhos ainda não trilhados.
Desencontrar-se
como um pássaro
num mergulho cego,
ou o peixe no momento do salto,
ou o trapezista quanto a mão passa
e encontra um vácuo
onde deveria haver uma barra de metal...

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Cena Cotidiana III

(Um boteco copo-sujo qualquer, parecido com aqueles do Mercado Novo, na rua dos Tupis, em Belo Horizonte, com o som de Fotografia 3x4 de Belchior ao fundo. Mesas e cadeiras desparelhadas postas na calçada, um forte ruído de fundo, pessoas falando ao mesmo tempo, alguém acompanhando a canção meio desafinado)
ANDRÉ - Jorge, cê tá cansado de saber que eu te amo, porra! O quê que eu preciso fazer mais? Já lavo tua roupa, chupo tua rola, limpo tua casa, aturo tua mãe e toda a porra do resto do mundo! Caralho Jorge! Cê nem se importa de saber o quê que eu tô sentindo! Caralho Jorge, CARALHO!!!

JORGE - Porra André, fala baixo! Pára de dar chilique. Tenha um mínimo de respeito!

ANDRÉ (Fazendo cara de indignado, e abrindo os braços em tom de irritação) - Respeito? Cê tá pedindo respeito pra você ou pra essa merda de lugar, com essa música baranga repetindo pela milésima e esse cara desafinado que não para de cuspir no chão? Cê tá pedindo que eu respeite essa ralé ou que eu te respeite na frente dessa escória? Nenhum deles vale o escarro que esse merda aí ao lado não cansa de cuspir na nossa direção. E você é igual a eles Jorge, se não fosse, não consumia suas noites aqui e ainda me trazia junto! 

JORGE - (Com um gesto apaziguador, levantando-se com calma e sorrindo desajeitado para os outros fregueses do bar) - Tudo bem, André! Se você quer discutir meus defeitos, eu assumo muitos deles! Tudo bem. Mas vamos fazer isso em casa, agora. Já chega por hoje! Acho que já bebemos demais! Vamos.

ANDRÉ - (Quase gritando, empurrando a mesa e derramando os dois copos de cerveja sobre ela) - Em casa? EM CASA!!? Tô cansado de você querer me esconder e se esconder em casa. Tô puto. E tô cansado de saber que em casa é só você botar sua rola pra fora e eu ir logo me acalmando e ficando louco! Não, não vou pra casa não, vou encerrar isso de vez aqui! (Puxa uma faca de mesa, dessas com serrilhado e aponta para o peito de Jorge)

JORGE - (Mal conseguindo disfarçar o temor em sua voz) - Abaixa isso André. Cê sabe que não pode viver sem mim. Relaxa vai... Já passamos dos nossos limites aqui.

ANDRÉ - (Com um sorriso malicioso nos lábios, uma lágrima nos olhos e um olhar obstinado para Jorge) - Não sei viver sem você? É isso então? (Enfia a faca em seu próprio peito)

(Fecham-se rapidamente as cortinas, ouve-se o barulho de um corpo caindo ao chão, juntamente com cadeiras, mesas e copos. Um grito forte que poderia ser de Jorge ou de qualquer outro cliente do bar também poderá soar. Sons adicionais de sirene também podem ser utilizados. Ao fundo, Belchior vai terminando os versos "Eu sou como você, eu sou como você que me ouve agora!" acompanhado pelo homem desafinado que bate palmas e se cala, encerrando a cena com um silêncio absoluto.)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Pessoa II

Creio,
vejo o sol e sei que é o sol,
a uma árvore, chamo árvore,
um bicho, uma planta, uma ruína...
Quisera construir uma ruína
com uma nesga de sol poente
e uma árvore 
e nuvens
e bichos
e chamá-la mundo
e acreditar que tal paisagem,
assim fabricada,
pudesse existir!
Sem mais...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Impressão III

Céu azul,
mar branco,
quebrando na areia,
escuma,
salsugem, 
onda, maresia,
infinitos...
Palavras!

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Impressão II

Um gosto que se esvai,
uma textura sem toque,
um odor específico, quente, doce,
palavras nunca pronunciadas,
uma miragem colada à retina,
e o grande deserto do olvido!



quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

III (Eu me lembro)

Lembro de um vizinho, amigo da família, satirizando um candidato à presidência que se auto-intitulava o "Caçador de Marajás". Pois bem, o vizinho sempre que via um santinho ou a propaganda televisiva do sujeito, soltava logo os versos: "vou descobrir o que me faz sentir, eu, caçador de mim" e se ria às gargalhadas de sua própria pilhéria!

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Cena Cotidiana II

HELENA (A cabeça enfiada numa janela de guilhotina, olhos esbugalhados, rosto tresloucado, cabelos bastante bagunçados, um dos seios de fora, com uma vassoura Princesinha em uma mão e um cutelo na outra, sendo brandidos descompassadamente)- Cortem as cabeças! CORTEM AS CABEÇAS!!!!!!

TRANSEUNTE QUALQUER (Correndo pronto a atendê-la e pegando uma foice que já estava encostada à parede) - Sim, Vossa Alteza! Será feita a sua vontade. Mas, lembre-se, eles pedem apenas por pão!

HELENA (Apontando a vassoura para o horizonte e parecendo ainda mais tresloucada) - De cada um deles! Tragam para mim! De cada um deles! Que comam bolo, broa, dónute! Tragam para mim! Todos! Feios, fedidos, monstruosos, irritantes, maltrapilhos, sujos, fracos, chorões, estúpidos! Cortem! COOOOOORTEM... (De repente cai a gelosia da janela sobre pescoço! Engasgo, tosse, e sua voz abafada grita) - Meu pescoço!

TRANSEUNTE QUALQUER (Faz um gesto largo com a foice, as cortinas se fecham no momento em que ela está a ponto de atingir o pescoço de Helena. Som de cabeça quicando no chão. Sangue molha e mancha a cortina, escorre por baixo dela e começa a escorrer do palco para a plateia. Todos correm.)

sábado, 29 de novembro de 2014

II (Eu me lembro)

Eu me lembro de chorar escondido, aos oito ou nove anos, por uma declaração mal interpretada!Lembro ainda de querer ficar escondido o resto de minha vida, por causa da vergonha! (Às vezes parece que ainda estou lá, naquele canto, sozinho.) 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Pessoa I

Nenhum lugar pra chamar de lar,
um vazio, um branco, um zero cortado ao meio!
Três vezes ninguém, noves fora…
Derrama, balde repleto do meu coração,
derrama sem se dar conta do abismo,
derrama sua ternura, sua surpresa, sua ilusão,
sem se dar conta de nada…

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Impressão I

Vestido vermelho sob a chuva cinza
Lábio vermelho sobre o uniforme cáqui
Sombrinha vermelha frente a arranha-céus negros
Crepúsculo vermelho em meio à fumaça
Sangue vermelho sobre o asfalto
Olhar verde, fresco, demorado! 

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Cena cotidiana I

JOSUÉ (Deitado num degrau de uma escadaria, a cabeça apoiada no degrau debaixo, num ângulo estranho de corpo. Veste roupas sujas, a barba grande, um buraco na camiseta) - Bom dia, bela dama parada no ponto de ônibus! O que fazes aqui?

AMÉLIA (Num vestidinho florido, no meio das coxas) - Ora, espero ônibus! O quê que cê quer?

JOSUÉ (Na mesma posição) - Nada, apenas ser teu companheiro de todas as horas. Amar-te e doar-me totalmente a ti. Massagear teus pés e teus mamilos no fim de um dia difícil. Beijar-te no meio da madrugada chuvosa e levar-te para o terreiro, para te amar sob a tempestade. Acompanhar-te em tuas viagens e levar-te nas minhas. Pentear-te os cabelos, confortar-te com maçãs e sustentar-te com passas até que desfaleças de amor!

AMÉLIA (Virando o rosto em outra direção, estendendo o braço e saindo) - Detesto passa, fode o salpicão!

NARRADOR - E nunca mais se viram!

(Fecham-se as cortinas; ouve-se um barulho de ônibus, sons de buzina e passos apressados; ruídos extras como moedas caindo, zíper de bolsa se abrindo, motorista xingando um ciclista, buzinaço de motoqueiros, retrovisores se quebrando ou vidro se estilhaçando ficam a cargo da direção/montagem)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

I (Eu me lembro)

Me lembro de vir a Belo Horizonte para o enterro de um tio, antes da mudança definitiva, alguns anos depois - acho que em 85! Viera com minha mãe (de quem não consigo reter alguma recordação imagética que não seja muito recente, e algumas de pouco mais de um ano atrás, que adoraria esquecer). Não existe uma Belo Horizonte nesta lembrança, só uma grande viagem de ônibus, um rio largo (ou a expectativa de passar sobre um), um cemitério e pessoas, todas sem voz ou sem rosto, fantasmas que já vão se perdendo.

Eu me lembro

Seguindo uma trilha que se inicia com Harry Mathews e seu 'I remember', e passa por Georges Perec com 'Je me souviens' que não é tradução e sim uma apropriação da mesma ideia, vou garimpar algumas lembranças também. O formato é de recordações esparsas, sem continuidade espaço temporal, apenas pequenos escritos que apontam fatos, reais ou fictícios (se é que podemos mesmo fazer essa distinção ou que ela exista de fato), que não têm nenhuma intenção de montar uma história ou um diário. Nem nenhuma outra intenção, creio, pois não vejo pequenos mementos pouco significantes gerando torrentes sentimentais ou quaisquer outras emoções! Trilhemos, pois, o caminho que se abre...

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Escrever, ler...

Acabo de ler três livros! Vermelho amargo de Bartolomeu Campos de Queirós, O duplo de Dostoiévski e Ratos e homens de Steinbeck. As leituras sempre me apontam para a dificuldade que é o ato de escrever. Escrever é, imagino, algo difícil, sobretudo para o escritor. Parece até que deve ser algo difícil. Li três narrativas tão diferentes entre si como água, uísque doze anos e ácido.

Ratos e homens é água. Narrativa fluida que facilmente vai sendo sorvida, sem grandes pausas, sem impactos que exijam energia ou força de vontade extra para a continuação. Não retira o leitor de seu sono habitual, de sua zona de conforto e não pede que este respire além do próprio texto. Parece-me que é possível lê-lo num só fôlego, sem praticar o que Barthes chamava de o real momento de leitura: quando se levanta os olhos do livro para pensar sobre ele. Dito tudo isto, aponto-o como um livrinho (realmente pequeno, 150 páginas) muito agradável, com uma história bem amarrada e personagens bem construídos, embora pouco profundos.

O duplo é como um bom uísque doze anos. Desce queimando, mas ainda assim deliciosamente. A Rússia czarista e seus funcionários surge na palavra de Dostoiévski e se torna pano de fundo para esse conto que beira o fantástico, beira o romance psicológico, beira o nonsense e nos deixa com um sabor estranho, entre o prazer e a perplexidade.

Vermelho amargo é ácido. Prosa poética de doer o corpo inteiro a cada sentença. À parte todas as questões auto-biográficas ou ficcionais, (como preferir) lemos uma prosa repleta de imagens cotidianas transfiguradas em experiência poético-estéticas das quais é difícil sair ileso. Se a literatura tem algo a ensinar, que não pode ser apreendido através de nenhuma outra ciência (conforme defendem alguns teóricos, dentre eles, Ítalo Calvino) talvez possamos, através deste texto e da experiência estética suscitada por ele, nos emaranhar no labirinto da alma humana e da complexidade das relações entre elas.



quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Escrever...

Começa o ano de 2014 e, manter um blog em 2013 não funcionou. Mas, percebo agora, no meio de tudo o que venho passando e fazendo, que tenho me afastado da escrita, que é algo que sempre me moveu e é algo que acredito fazer bem. É preciso retomá-la... É preciso escrever em qualquer tempo, seja da forma que for, escrever é preciso. O blog volta a ser uma aventura, um lugar para se frequentar de quando em vez...